quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Babel mediterrânea

Imagens: Google Maps

Bater perna atrás de apartamento tem suas vantagens. Hoje, por exemplo, fiz duas viagens inesquecíveis, e num só dia!

A primeira pode ser descrita no espaço: oito quilômetros entre Gràcia e o Passeig del Born, indo e vindo por ruelas as mais improváveis, visitando um piso aqui outro ali, anotando telefones anunciados em plaquetas, e – é claro - conferindo as últimas rebajas, que ninguém é de ferro.

Mas essa distância também pode ser medida no tempo. Séculos de desenvolvimento separam a bonança e o requinte de Gràcia da obscuridade e quase miséria de algumas ruazinhas da Ribeira, na Cidade Velha, a despeito da antiguidade dos edifícios de ambos os bairros.

E, se quisermos ir mais longe, há uma distância geopolítica entre esses dois mundos. Gràcia é quase que um reduto catalão, mais que espanhol. Por suas ruas limpas e praças arborizadas se vêem, a qualquer hora, velhinhos empurrando carrinhos de supermercado e crianças bem vestidas brincando sem maiores problemas.

Sem falar no magnífico Passeig de Gràcia, larga avenida que atravessa boa parte do bairro e concentra, em poucos quilômetros, os maiores bancos, as melhores grifes e duas das mais importantes criações de Gaudi, a Casa Milà (La Pedrera) e a Casa Batlló.

A Praça Catalunya é o ponto de encontro entre a tranquilidade de Gràcia e a mais completa anarquia étnica e urbana da Cidade Velha. Ampla e ensolarada, a praça é, para mim, o coração de Barcelona, democraticamente compartilhada por turistas endinheirados, músicos de rua, lambe-lambes da era digital, mendigos, estudantes, trabalhadores, vadios, brancos, negros, amarelos, vermelhos e o que mais se puder imaginar. Além de umas dezenas de pombos, é claro.

Ali começou o segundo trecho da primeira viagem. Eram 6 horas da tarde e eu deveria estar às 8 da noite no Passeig del Born, para ver os dois últimos apartamentos do dia. Tudo bem, eu poderia pegar a Via Laietana e baixar em linha reta, levaria meia hora, mas quem disse que consegui? Me embrenhei pelo labirinto de ruelas do Bairro Gótico, dando voltas e mais voltas, cruzei a Laietana e acabei no labirinto de ruelas da Ribeira, onde eu quase fui morar.

É simplesmente irresistível circular por ali sem olhar para o relógio, tamanha a diversidade de tribos, cheiros, visuais, fachadas, recantos, pichações, mercadorias, bares, forns de pa, caminhos e descaminhos. Uma criatura simplesmente se perde entre tantas possibilidades. E que delícia perder-se num mundo tão vasto!

Mas, como diz o poeta Gil, “é preciso estar atento e forte”, porque a coisa nem sempre é bonita. Há sujeira e bosta de cachorro, becos sombrios, figuras assustadoras, prédios se desmanchando, umidade, claros e escuros e um cheiro de esgoto que fica impregnado em suas narinas.

E foi bem no meio dessa viagem, antes de chegar ao destino final, que aconteceu, como que por milagre, a segunda viagem do dia – a viagem dentro da viagem. Foi como fazer um tour pelo Mediterrâneo – incluindo sul da Europa, norte da África e um pedaço do Oriente Médio – em 20 minutos a pé.

Eu já estava quase cruzando a Carrer de la Princesa, fronteira entre a Ribeira e o Born, quando desemboquei na Carrer dels Corders. Logo de cara me vi no meio de uma briga de jovens turcos. Um gritava – em turco! –, outro tentava reagir e o resto assistia impávido. Olhei para os lados em busca de um plano B, mas só consegui vislumbrar um grupo de homens árabes, turbantes e barbas brancas, confraternizando no fim de tarde na praça ao lado, sem dar a mínima para a questão turca.

Me fingi de morta e tentei passar sem ser vista, embora a probabilidade fosse pequena, pois eu era a única mulher num raio de 100 metros. Livre da confusão, reduzi o passo e comecei a olhar para os lados. Inacreditável! Kebabs dividindo porta com estúdio de hip hop, armazém islâmico, cabeleireiro francês, padaria catalã, loja de antiguidades marroquina, pizzaria italiana, tudo num só quarteirão, cada qual em sua língua nativa, uns usando vestes típicas, outros fumando coisas estranhas, e ninguém nem aí para o vizinho. Um Mediterrâneo democrático coberto por um céu de varais coloridos.

Saí dali meio tonta e quase perdi a hora da visita ao penúltimo apartamento do dia. Acabei a jornada numa creperia francesa que serve Cosmopolitan e Caipirinha de Ipioca, atendida por um garçom brasileiro e uma camarera uruguaia.

Não sei o que seria de mim sem o Google Maps!

Bônus

4 comentários:

  1. Anamaria, vc está ficando craque nessa coisa, o Blog está cada vez + multi - multimídia, multipercepções, multiemoções, multituuudo. Essa sacada da viagem ao Mediterrâneo numa só quadra foi o "OH", levou-me eu também a flanar por ali, "vendo" as imagens descritas e imaginando ainda outras, sentindo os cheiros, andando naquelas ruas. Gracias chica pela passagem grátis!

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  2. Marcita, isso é só uma pequena amostra desta cidade maluca, bom mesmo é ver ao vivo.
    Venga! Tô te esperando.
    Beijo.

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