sábado, 29 de agosto de 2009

Ser ou estar? Eis a questão

Foto: Anamaria Rossi

Hoje é meu décimo-sexto dia em Barcelona, e foi a primeira vez que um espanhol – poderia ser uma espanhola, mas por acaso foi um espanhol – dirigiu a palavra a mim espontaneamente. Não era garçom nem vendedor nem corretor de imóveis nem camelô nem funcionário do metrô nem pedinte. Era apenas um espanhol tomando um café na mesa ao lado.

Eram seis e pouco da tarde, o sol ainda ardia, e eu esperava tranquilamente por um amigo brasileiro numa das mesinhas do Café Zurich, tradicional ponto de encontro na Praça Catalunya, bem no início da Rambla preferida dos turistas, a que divide duas das mais agitadas áreas da Cidade Velha, o Bairro Gótico e o Raval. Tomava una cañita, uma espécie de chopp garotinho, e observava a fauna multicultural que desfilava pela larga calçada.

O cidadão de uns 40 anos e olhos azuis da cor do mar me dirigiu um castellano perfeito. Por um momento pensei que pudesse estar acontecendo um milagre, o estabelecimento de uma ponte, mínima que fosse, entre um local e um estrangeiro. Mas logo ficou claro que o rapaz também era um estranho em Barcelona. Ele queria dicas sobre lugares interessantes para sair à noite além daquele miolo congestionado de turistas.

Tudo bem, pode-se dizer que a abordagem não foi das mais criativas. Concordo. Mas que importância tem isso quando: 1) você está há 16 dias numa cidade totalmente estranha, na qual vai passar pelo menos um ano, e ainda não conhece ninguém além dos brasileiros e da gerente do banco?; 2) você não está, no momento, nem um pouco interessada no gênero, na idade ou na cor dos olhos do interlocutor, desde que haja um interlocutor?; e 3) você está completamente à toa numa mesinha na calçada em frente à Praça Catalunya, numa linda tarde de verão, esperando um amigo e tomando una cañita?

Processadas rapidamente todas essas informações, e mais algumas, gastei meu portuñol por dez minutos e, embora não tenha conseguido responder à pergunta do moço, quando meu amigo chegou eu já tinha uma coleção de boas dicas sobre Palma de Mallorca, a terra do meu interlocutor tão estrangeiro quanto eu.

Desde que li A Alma Imoral, do rabino Nilton Bonder, comecei a entender de um modo diferente o que é ser estrangeiro. É mais ou menos como me sinto, em qualquer lugar, inclusive em minha terra natal, desde que saí de casa, aos 17 anos, sozinha, para estudar em Brasília. Ser estrangeiro é, basicamente, não ser “de casa”. Não pertencer àquela cultura, não partilhar seus valores, não cultivar os mesmos hábitos, não esperar as mesmas reações, não rir das mesmas piadas e, sobretudo, não olhar com os mesmos olhos para o que, a princípio, está à vista de todos.

O que define o estrangeiro não é a língua ou a certidão de nascimento, é a diferença entre ser e estar. Estrangeiro é o que vem de longe, desconhece e é desconhecido, e ainda que não queira está sempre transgredindo, porque a transgressão é a própria alma do estranhamento.

Quando me perguntam se volto para casa digo que sim, é claro, como não voltar ao meu País, ao meu lugar? Mas no fundo sei que não há volta. Volta-se para um ponto definido no espaço que um dia foi a “sua casa”, mas nem você nem a “casa” jamais serão os mesmos. Uma alma que deixa sua “casa” será, para sempre, uma alma estrangeira. E saber disso me deixa estranhamente feliz.


4 comentários:

  1. boa, parabéns. conseguiu me tirar por cinco minutos do fechamento.

    cheiros de saudade,
    leo

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  2. E olha que isso, numa sexta-feira de pescoção, só mesmo um amigo como você, heim, Léo?
    Muuuita saudade.
    Beijo.

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  3. Já te falei que você não volta mais...
    Beijo

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