Foto: Pedro Rossi
Quando entramos no trem ele está lá, na última fila, encostado à janela, com três cadeiras vazias ao seu redor. Vamos até o fundo, escolhemos as três cadeiras vazias do lado oposto, onde um jovem espanhol lê e segue lendo um livro em japonês, sem levantar os olhos.
Karen é a primeira a notar a garrafinha PET com um líquido amarelado que ele tem na mão. Deve ser rum, penso. Que eu saiba ainda não se vende cachaça por aqui. Não demora muito e ele começa a conversar baixinho, fazendo gestos e expressões como se a um interlocutor real.
As três cadeiras continuam vazias. A seus pés, uma mochila puída e uma sacola plástica com pertences pessoais. Está limpo, veste-se com simplicidade e calça um par de tênis branquíssimos. A pele morena e lustrosa realça a desesperança no olhar sem brilho. De tempos em tempos, pega a garrafinha da sacola e toma uns goles. Lança um olhar demorado sobre o Mediterrâneo. E retoma o diálogo em voz baixa com seu interlocutor imaginário.
Ouvimos quando ele enumera, quase em silêncio, os pueblos por onde o trem irá passar, tropeçando na sequência, refazendo a linha, errando e retomando.
- Dá igual. Na próxima semana eu volto lá.
Cala-se por um instante quando o jovem de traços indígenas, com fones de ouvido e um boné espalhafatoso, senta-se à sua frente. Não se olham. O rapaz fica por ali uns 10 minutos, e antes de sair nota que o homem tira os olhos da janela e volta-os para nós. Está sorrindo e desenha no ar com gestos largos.
- Me encanta saber que um computador não pode mudar certas coisas!
Vira-se para a janela, e de novo para nós. Fala pausadamente.
- O dia é dia, a noite é noite, o sol nasce e se põe, e nenhuma modernidade pode mudar isso. - A palavra sai queimando de sua boca.
Nos entreolhamos, desconfortáveis, eu, Pedro e Karen. Uma nuvem encobre o sol que nos convida à praia. Ele segue filosofando.
- Se essas coisas pudessem ser mudadas, o mundo acabaria. Não se poderia plantar, não se poderia comer. Não haveria batatas, tomates, alfaces, não haveria nada.
Tira os olhos do vazio e os fixa, verdes, em mim.
- Diga-me: pode-se comer modernidades? Nãããão. Comemos batatas, tomates, alfaces. Verdad, señora?
É o segundo espanhol que me toma espontaneamente como interlocutora em 18 dias por aqui. Seu nome é Xavier. Fala com tranqüilidade e sem sinais de embriaguez. Seu discurso ganha sentido e coerência a cada frase. Não olha para nós, mas fala para nós.
- Faltam dois meses para eu completar 52 anos. Trabalhei duro por 30 anos! E agora querem que eu espere mais dois meses para ter os meus direitos! Enquanto isso, o que sou? Nada!
Inquieta-se.
- Querem que eu não lute? Pois luto! Querem que eu não ande livremente por meu país? Ora, um pouco de respeito, façam-me o favor!
Irradia uma revolta que incomoda a vizinhança. A moça sentada um banco à frente muda de lugar. O espanhol ao meu lado deixa o livro japonês por uns segundos. Karen está muda. Pedro hesita entre olhar e não olhar. Só eu, meio que encantada, não consigo tirar os olhos do homem mirrado que vai virando um gigante à minha frente.
Sua voz é o único som possível no vagão.
- Sou espanhol e catalão. Veja bem. Se está sentado ao meu lado um homem de Andaluzia, então somos dois espanhóis viajando juntos, dois homens do mesmo país, apenas de regiões diferentes. Dois espanhóis.
O silêncio é absoluto ao seu redor.
- Falo perfeitamente o catalão! - E desanda a discursar em seu idioma natal. - Francês? Bonjour, madamme. S’il vous plaît, monsieur. Italiano? Io parlo italiano, madonna.
Interrompe a demonstração e firma o olhar no banco vazio.
- Mas isto aqui é a Espanha, madre mía!
Luta contra um exército invisível. Respira fundo, olha pela janela. Volta-se de novo para o banco vazio, com ar de deboche.
- Quer dizer, isto aqui era a Espanha, agora é a Europa! E fazem conosco o mesmo que os italianos, os ingleses, os franceses fazem com os romenos, os africanos, os latinos... e até com os espanhóis: ‘Vocês não têm mais nada a nos oferecer? Então vão-se embora daqui!’
Está exausto. Cola os olhos à janela, por onde seguem desfilando as praias da Costa Brava, ao norte de Barcelona.
- Crise? Que crise? Praias cada vez mais abarrotadas, carros cada vez mais modernos. Não há crise, señora, o que há são modernidades!
Entendo que também é estrangeiro meu segundo espanhol. Estrangeiro em seu próprio país, onde não mais se reconhece – ou é reconhecido – como cidadão.
Perplexa e muda, levanto-me para desembarcar. Xavier, elegante desde o início, me dirige um olhar doce e pede desculpas pelo incômodo. Desejo-lhe boa sorte e ainda o ouço dizer, antes de soltar uma gargalhada:
- Por aqui viveu um cara mais louco do que eu. Joder! Chamava-se Salvador Dali.
Salvador Dali nasceu em Figueres,